A arquiteta Ayesha Luciano não sabe muito sobre seus antepassados. Assim como outros descendentes de populações afro-brasileiras e indígenas, a história de sua família foi apagada durante o processo de colonização do Brasil. É o que a filósofa Sueli Carneiro chama de epistemicídio: o aniquilamento das saberes e memórias em países de passado escravista.
Mas os perpetradores deste genocídio têm suas figuras lapidadas em pedra, ocupando lugar central em espaços públicos do país. É o caso da estátua totêmica do bandeirante Borba Gato, na capital de São Paulo, ou de Joaquim Pereira Marinho, traficante de pessoas escravizadas cuja estátua está no centro de Salvador (BA). A arquiteta comenta:
É preciso pensar no anacronismo que são pessoas vítimas dos processos históricos terem suas histórias e memória apagadas, enquanto as que promoveram genocídio e escravidão são homenageadas em espaços públicos. Como no século 21 ainda prestamos homenagem a esses personagens? Não há possibilidade de futuro ou de fim do racismo sem revisitar o nosso passado.
No bojo das manifestações e debates antirracistas que acontecem em diversos lugares do mundo, a retirada e destruição de monumentos de personalidades escravagistas acende debates sobre patrimônio e memória em espaços públicos. Uma de suas imagens mais emblemáticas foi a de manifestantes britânicos derrubando a estátua do escravagista Edward Colston na cidade de Bristol.
“O debate sobre as estátuas é sobre direito à cidade e de luta pela memória”, elucida Carlos Silva Jr, professor de História da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e doutorando em História da África pela Universidade de Hull (ENG). E continua:
Direito à cidade é a população poder dizer quais pessoas gostariam que fossem homenageadas e quais homenagens são inaceitáveis; é discutir que legado é deixado para a próxima geração quando se justifica a permanência de uma estátua escravista alegando conservação de patrimônio, ou quando se toma a decisão de retirá-la e problematizar o papel destas figuras, ampliando a discussão sobre nosso passado.
A memória nos espaços públicos: o que dizem essas estátuas
Estátuas como o Monumento às Bandeiras, um colosso de granito na zona sul de São Paulo que homenageia os bandeirantes, se impõe na memória da cidade. Sua localização nevrálgica no tecido urbano fixa-se no imaginário de qualquer transeunte que a veja, sem nenhuma contextualização sobre quem foram os bandeirantes ou sua participação no genocídio indígena. Ayesha explica que:
Estátuas, assim como toda obra de arte, carregam uma ideologia. A ideologia se expressa na forma como ela foi construída e também na sua localização. Quando se escolhe colocar a estátua de um escravocrata no centro de uma cidade, em um espaço público, essa figura está sendo homenageada. Ela está ali para todos verem.
Ressignificar esses patrimônios colocando placas explicativas é uma pálida solução para monumentos em cuja construção estão inscritos signos indeléveis de poder, adiciona Carlos. “São personagens altivos, viris, de peito estufado, em sua esmagadora maioria homens. No caso do traficante de escravos Joaquim Pereira Marinho, rodearam-no com crianças, que o olham como se fosse bondoso.”
Mais do que construir o imaginário urbano, estes monumentos quando posicionados em espaços públicos soerguem um valor histórico. A arquiteta e urbanista Tainá de Paula, também especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz, explica:
É a construção da memória de poder. A história é contada a partir dos vitoriosos nos processos de disputa social e política, hegemonizando narrativas e discursos deixados para o futuro. Entendendo o valor como a relação de patrimônio sendo construído e mantido, aqueles que detém o capital decidem o senso comum do que é valorado. Subjetivamente, estas estátuas dizem que a memória continuará viva em todos aqueles que verão e terão contato com os marcos de referência construídos a partir das elites.
A arquiteta assinala ainda que essas imagens sublinham no espaço público uma suposta subalternidade de povos indígenas, africanos e afro-brasileiros, ignorando suas potências e valores. E conclui:
São várias as estátuas de escravagistas, ou de cidadãos negros e indígenas em uma condição de escravização, mas raras as de pessoas negras em outros lugares da sociedade, como o arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira (Tebas) ou o escritor Machado de Assis, que seriam essenciais para estabelecer uma identidade racial positiva na memória popular.
O que fazer com as estátuas?
Embora ainda não haja uma resposta definitiva sobre o que se fazer com as estátuas – os especialistas ouvidos na reportagem convergem para sua remoção – há consenso de que não podem mais ocupar o espaço que tem no imaginário e no tecido da cidade. Recentemente, a deputada Erica Malunguinho (PSOL-SP) protocolou um projeto de lei pela retirada das estátuas de espaço público de São Paulo e armazenamento deles em museus.
Para Carlos, fazem falta no Brasil museus diversos sobre a escravidão, que deem conta da complexidade do processo e sua reverberação no presente. Estes museus, ainda por construir, seriam em sua opinião um lugar adequado para colocar os monumentos:
A discussão sobre as estátuas é também a discussão sobre a memória não trabalhada de um povo. O racismo no Brasil, este processo de discriminação brutal que a população negra ainda enfrenta, tem justamente a ver como as memórias da escravidão. Precisamos de museus sobre a escravidão. Não só sobre museus de cultura afro, que são importantes, mas museus sobre o genocídio, visitados principalmente por escolas públicas e privadas, para que se faça uma discussão honesta sobre nosso passado escravista. É para lá que estas estátuas deveriam ser movidas.
Via Portal Aprendiz.